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Chacina no Rio: a branquitude segue nadando

Em um dia em que mais de cem corpos, a maioria de pessoas negras e pobres, foram removidos da mata ou do meio da rua, a vida segue sua rotina para a elite

29 de Outubro de 2025

Eu nasci na Nova Brasília, no Complexo do Alemão, e por muito tempo frequentei a Penha, onde minha filha morou nos primeiros anos de vida. Quando leio o noticiário sobre a “megaoperação”, não vejo apenas números. Vejo as vielas onde corri, as escadas onde sentei, os rostos que poderiam ser os de meus vizinhos e primos. Conheço a Praça São Lucas, onde quase uma centena de corpos foram depositados em lonas, como mercadoria descartada. Para mim, essa não é uma tragédia distante; é um ataque direto ao meu mapa afetivo.

É deste lugar de profunda e íntima conexão que se torna impossível processar a frieza macabra com que o governador Cláudio Castro (PL) e seus secretários tratam o evento. Enquanto o cheiro de morte impregna a Estrada José Rucas, onde muito andei e passei de Kombi, o poder público celebra uma “ação legítima” e um “baque” no crime. Essa é a face mais cínica da suposta guerra: a eliminação como signo de eficiência. O ciclo se repete com mais mortes, mais armas apreendidas, mais caos social, e a certeza de que ontem mais uma geração de “menó” revoltado foi criada.

A cada corpo negro no chão, um suspiro de alívio de quem nos vê como ameaça permanente

Quero falar aqui de gente que, bem diferente de mim, não tem conexão alguma com o local e nem sabem muito bem onde fica o Alemão e a Penha. A branquitude, aqui, é o status quo, o silêncio confortável, o poder de decidir o que é tragédia e o que é “dano colateral”. São os cheerleaders discretos que, de seus apartamentos, aprovam a “dureza necessária” da polícia, desde que o tiro não estoure em seu home office. São os que trocam o noticiário por um jantar, aliviados que o “problema” está contido nas favelas do outro lado da cidade.

É impossível não lembrar da famosa frase de Franz Kafka em seu diário, no dia 2 de agosto de 1914: “A Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, natação.”

A branquitude segue nadando em piscina de sangue. Em um dia em que mais de cem corpos, a maioria de pessoas negras e pobres, foram removidos da mata ou do meio da rua, a vida segue sua rotina para a elite. O delivery chega, a bolsa sobe, o trânsito se normaliza e o debate da semana será a roupa da primeira-dama. Essa indiferença não é apenas insensibilidade; é manutenção de estrutura. A violência policial se torna, para o extrato social mais privilegiado, um cruel e eficaz mecanismo de higiene social, limpando a paisagem dos indesejáveis. A cada corpo negro no chão, um suspiro de alívio de quem nos vê como ameaça permanente.

Se o governador Cláudio Castro é o responsável por essa guerra civil contra a população negra, o judiciário, a mídia e a branquitude são fiadores do genocídio

Sempre que o Rio de Janeiro é palco de um massacre como este, a grande mídia também cumpre um papel nefasto de normalização do horror. A cobertura televisiva, em especial a da TV Globo, mais uma vez agiu como um megafone do Estado, ecoando a narrativa oficial antes de qualquer investigação. Ao noticiar as dezenas de mortos na Penha com a adjetivação imediata de “bandidos” e “criminosos”, sem sequer ter acesso aos nomes das vítimas, muito menos a laudos periciais ou inquéritos concluídos, a mídia hegemônica se isenta do jornalismo e cumpre uma função de legitimação social do extermínio. Essa rotulação sumária transforma vidas em números, desumaniza os corpos e, o que é mais grave, confere à chacina ares de “missão cumprida”, blindando a ação policial de um escrutínio rigoroso e reforçando a ideologia que permite matar impunemente nas favelas.

Com o cheiro de pólvora e sangue ainda pairando sobre as comunidades, torna-se insustentável a inércia do Ministério Público Estadual, instituição que, por preceito constitucional, deveria exercer o controle externo da atividade policial e zelar pela defesa da ordem jurídica e dos direitos fundamentais. Em vez de atuar como guardião da lei e impedir a repetição dessas matanças, o MP fluminense prefere estar de mãos dadas com o governo responsável por quatro das seis maiores chacinas da história do Rio de Janeiro e, por sua vez, transforma-se em fiador tácito do massacre. Seu silêncio e sua burocracia, nesse contexto de extermínio seletivo de corpos negros, deixam de ser inoperância para se configurar em corroboração de uma política de segurança pautada pela letalidade, conferindo ao Estado uma perigosa licença para matar sem ser incomodado.

Se o governador Cláudio Castro é o responsável direto por essa política de guerra civil declarada contra a população negra, se é dele a caneta que autoriza, se é dele a voz que celebra e se é dele a responsabilidade por ignorar os alertas e os clamores internacionais, o judiciário, a mídia e a branquitude confortável em seus apartamentos são fiadores do genocídio. Que a vergonha coletiva dessa barbárie nos impeça de seguir nadando.

Thales Vieira é antropólogo (UFF) e cientista social (PUC-Rio). Doutorando em Ciências Sociais pela PUC-Rio, é fundador e co-diretor do Observatório da Branquitude. Atuou no poder público, em organismos internacionais como o BID, ONU-Habitat e em fundações como o Instituto Unibanco e o Instituto Ibirapitanga. É especialista nos estudos críticos de branquitude e em relações raciais.